Capítulo 2

                                                        CAPÍTULO 2

1. Meus irmãos, não tenhais a fé de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas. 
2. Porque, se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no dedo, com trajes preciosos, e entrar também algum pobre com sórdido traje,  
3. E atentardes para o que traz o traje precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu aqui num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé, ou assenta-te abaixo do meu estrado,
4. Porventura não fizestes distinção entre vós mesmos, e não vos fizestes juízes de maus pensamentos?
5. Ouvi, meus amados irmãos: Porventura não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé, e herdeiros do reino que prometeu aos que o amam? 
6. Mas vós desonrastes o pobre. Porventura não vos oprimem os ricos, e não vos arrastam aos tribunais?
7. Porventura não blasfemam eles o bom nome que sobre vós foi invocado? 
8. Todavia, se cumprirdes, conforme a Escritura, a lei real: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, bem fazeis. (Lv 19:18, Mt 22:39, Mc 12:31, Rm 13:9, Gl 5:14.) 
9. Mas, se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, e sois redargüidos pela lei como transgressores.


À primeira vista, esta repreensão parece ser dura e desarrazoada; pois é um dos deveres da cortesia, que não deve ser negligenciado, "honrar aqueles que são nobres no mundo". 

Ademais, se o respeito às pessoas fosse mau, os servos deveriam se libertar de toda a sujeição – pois a liberdade e a servidão são consideradas por Paulo como condições de vida. O mesmo se deve pensar acerca dos magistrados.

Mas a solução destas questões não é difícil, se o que Tiago escreve não for isolado. 

Pois ele não desaprova simplesmente a honra prestada aos ricos, mas que isso não deveria ser feito de modo a desprezar ou censurar os pobres; e isto se torna ainda mais claro, quando passa a falar acerca da regra do amor. 

Portanto, lembremo-nos de que o respeito às pessoas condenado aqui é aquele pelo qual os ricos são exaltados de tal modo que é feita injustiça aos pobres – o que também ele mostra claramente pelo contexto; e, certamente, é ambiciosa, e cheia de vaidade, a honra demonstrada pelos ricos em desprezo aos pobres. 

E também não há dúvida de que a ambição reina, e a vaidade também, quando somente as máscaras deste mundo estão em alta estima. 

Devemos nos lembrar desta verdade, de que deve ser considerado entre os herdeiros do reino de Deus aquele que despreza os réprobos e honra os que temem a Deus (Sl 15:4). 

Aqui, então, é condenado o vício contrário – a saber, quando, apenas por respeito às riquezas, alguém honra os ímpios e, como foi dito, desonra os bons. 

Se, então, lêsseis assim: “Peca aquele que respeita o rico”, a sentença seria absurda; mas se, como segue: “Peca aquele que honra apenas o rico e despreza o pobre, e o trata com desrespeito”, esta seria uma doutrina verdadeira e piedosa.

1. Não tenhais a fé, etc. em acepção de pessoas.

Ele quer dizer que o respeito às pessoas é inconsistente com a fé de Cristo, de modo que não podem estar unidos, e isto com razão; pois, através da fé, somos unidos em um só corpo, no qual Cristo tem a primazia. 

Portanto, quando as pompas do mundo se tornam tão proeminentes que encobrem o que Cristo é, fica evidente que a fé tem pouco vigor. 

Ao traduzir τὢς δόξης como “por consideração” (ex opinione), segui Erasmo; embora o intérprete antigo não possa ser acusado por tê-lo traduzido como “glória”, pois a palavra significa as duas coisas; e pode ser convenientemente aplicada a Cristo – e isto de acordo com o propósito da passagem. 

Pois, tão grande é o esplendor de Cristo, que facilmente extingue todas as glórias do mundo – se de fato ela irradia aos nossos olhos. 

Por onde segue-se que Cristo é pouco estimado por nós, quando a admiração da glória mundana se nos apega. 

Mas a outra exposição também é mui apropriada, pois, quando a consideração ou o valor das riquezas ou das honras fascina os nossos olhos, a verdade, que deveria prevalecer, é suprimida.

 Assenta-te convenientemente significa assentar-se com honra

4. Porventura não fizestes distinção em vós mesmos? ou, não estais condenados em vós mesmos?

Isto pode ser lido tanto afirmativa como interrogativamente, mas o sentido seria o mesmo, pois ele enfatiza a falta por meio disto – que eles tinham prazer e se indultavam em tão grande impiedade. 

Se for lido interrogativamente, o sentido é: “Vossa própria consciência não vos acusa, de modo que não precisais de outro juiz?” Se for preferida a afirmativa, isto é o mesmo que se ele tivesse dito: “Este mal também acontece, que não pensais que tendes pecado, nem sabeis que vossos pensamentos sejam tão ímpios”.

5. Ouvi, meus amados irmãos.

Agora ele prova, por meio de dois argumentos, que eles agiam de modo ridículo, quando, por amor aos ricos, desprezavam os pobres. 

O primeiro é que é inconveniente e vergonhoso abater aqueles a quem Deus exalta, e tratar injuriosamente aqueles a quem ele honra. Como Deus honra aos pobres, então todo aquele que os repudia inverte a ordem de Deus. 

O segundo argumento é tomado a partir da experiência comum; pois, como os ricos são em grande parte opressivos para com os bons e inocentes, é mui desarrazoado prestar tal recompensa pelos males que causam, para que sejam mais aprovados por nós do que os pobres – os quais nos ajudam mais do que prejudicam. Agora veremos como ele procede com estes dois pontos.

Não escolheu Deus aos pobres deste mundo?

De fato, não exclusivamente, mas ele quis começar com eles, a fim de abater o orgulho dos ricos.

É isto o que Paulo também diz – que Deus escolheu, não muitos nobres, nem muitos poderosos do mundo, mas os que são fracos, a fim de envergonhar aqueles que são fortes (1 Co 1:25). 
Em suma, embora Deus derrame a sua graça sobre os ricos em comum com os pobres, sua vontade é preferir estes àqueles, a fim de que os poderosos aprendessem a não se gabarem, e para que os ignóbeis e obscuros atribuíssem o que são à misericórdia de Deus, e para que ambos fossem educados à mansidão e humildade. 

Ricos na fé não são os que abundam em grandeza de fé, e sim aqueles que Deus enriqueceu com os diversos dons do seu Espírito, os quais recebemos pela fé. 

Pois, sem dúvida, como o Senhor trata generosamente a todos, cada um se torna participante dos seus dons segundo a medida da sua fé. 

Se, então, estamos vazios ou necessitados, isto prova a deficiência da nossa fé; pois, se tão somente alargarmos o regaço da fé, Deus estará sempre pronto a enchê-lo. 

Ele afirma que um reino está prometido aos que amam a Deus; não que a promessa dependa do amor; mas ele nos lembra de que somos chamados por Deus para a esperança da vida eterna, sobre esta condição e com esta finalidade – para que o amemos. 

Nesse caso, o fim, e não o começo, é assinalado aqui.

6. Porventura os ricos.

Ele parece instigá-los à vingança ao apresentar o domínio injusto dos ricos, para que aqueles que eram tratados injustamente retribuíssem de igual para igual; e, por outro lado, somos mandados em toda a parte a fazer o bem àqueles que nos injuriam. 

Mas o objetivo de Tiago era outro; pois ele apenas queria mostrar que estavam sem razão ou juízo aqueles que, por ambição, honravam os seus executores, e ao mesmo tempo prejudicavam os seus próprios amigos – ao menos, aqueles dos quais nunca sofreram nenhum mal. 

Pois, por isso, mostrava-se ainda mais plenamente a vaidade deles – que não fossem induzidos por nenhum ato de bondade; eles apenas admiravam os ricos porque eram ricos; não somente isto, mas bajulavam servilmente aqueles que descobriam, para sua própria perda, serem injustos e cruéis. 

Existem, de fato, alguns ricos que são justos, e mansos, e detestam toda a injustiça; mas poucos homens assim serão encontrados. 

Tiago, então, menciona o que ocorre com a maioria, e o que a experiência diária prova como verdadeiro. Pois, como os homens geralmente exercem o seu poder fazendo o que é errado, por aqui se mostra que, quanto mais poder alguém tenha, pior ele é, e tanto mais injusto para com o seu próximo. 

Tanto mais cuidadosos então devem ser os ricos, para que não contraiam nada desse contágio que em toda a parte prevalece entre aqueles de seu próprio nível. 

7. Digno, ou bom nome.

Não tenho dúvida de que ele se refere aqui ao nome de Deus e de Cristo. 
E diz: por, ou sobre vós foi invocado, não em oração, como a Escritura às vezes tende a falar, mas por confissão – assim como é dito que o nome de um pai, em Gn 48:16, é invocado sobre a sua descendência, e, em Is 4:1, o nome de um marido é invocado sobre a esposa. 

Então, isto é o mesmo que se ele tivesse dito: “O bom nome em que vos gloriais, ou pelo qual considerais uma honra serdes chamados; mas, se eles orgulhosamente caluniam a glória de Deus, quão indignos são de serem honrados pelos cristãos!” 

Agora segue-se uma declaração mais evidente; pois ele assinala expressamente a causa da última repreensão – pois eles eram servilmente atenciosos para com os ricos, não por amor, mas, pelo contrário, por um vão desejo de alcançar o seu favor. 

E isto é uma antecipação, pela qual, por outro lado, ele prevenia uma desculpa; pois eles poderiam ter objetado e dito que não devia ser acusado aquele que humildemente se submete aos indignos. 

De fato, Tiago admite que isto é verdade, mas mostra que era falsamente pretendido por eles, porque mostravam esta submissão de homenagem, não por amor ao seu próximo, mas por acepção de pessoas.

Na primeira cláusula, então, ele reconhece como justos e louváveis os deveres do amor que cumprimos para com o nosso próximo. 

Na segunda, nega que o respeito ambicioso às pessoas deva ser considerado como desta natureza, pois difere muito do que a lei prescreve. 

E o ponto crítico desta resposta gira em torno das palavras “próximo” e “acepção de pessoas” – como se ele tivesse dito: “Se pretendeis que existe algum tipo de amor no que fazeis, isto pode ser facilmente contestado; pois Deus nos manda amarmos o nosso próximo, e não fazermos acepção de pessoas”. 

Ademais, esta palavra, “próximo”, inclui toda a humanidade; então, aquele que diz que muito poucos, segundo a sua própria fantasia, devem ser honrados, e outros ignorados, não guarda a lei de Deus, mas se sujeita aos desejos depravados do seu coração. 

Deus expressamente nos recomenda os estranhos e inimigos, e todos, até os mais desprezíveis. 
A esta doutrina, a acepção de pessoas é totalmente contrária. 
Por isso, Tiago corretamente afirma que a acepção de pessoas é inconsistente com o amor.

8. Se cumprirdes a lei real.

A lei aqui entendo simplesmente como regra de vida; e cumprir, ou realizá-la, é guardá-la com verdadeira integridade de coração – e, como dizem, circularmente (rotunde); e ele põe essa forma de guarda em oposição a uma observância parcial dela. 

É dito, na verdade, que ela é uma lei real, tal como é o caminho, ou estrada real – ou seja, plana, direta e uniforme – o que, por implicação, está em oposição a trilhas e curvas sinuosas. 

Contudo, é feita alusão, conforme penso, à obediência servil que eles prestavam aos ricos, quando podiam, servindo com sinceridade ao seu próximo, ser não apenas homens livres, mas viver como reis. 

Quando, em segundo lugar, ele diz que aqueles que faziam acepção de pessoas eram redarguidos, ou reprovados pela lei, a lei é tomada de acordo com o seu sentido próprio. 
Pois, como somos ordenados por mandamento de Deus a abraçar a todos os mortais, todo aquele que, com algumas exceções, rejeita a todos os demais, quebra o vínculo de Deus, e inverte também a sua ordem, e é, por conseguinte, justamente chamado de transgressor da lei.

10. Porque qualquer que guardar toda a lei, e tropeçar em um só ponto, tornou-se culpado de todos.  
11. Porque aquele que disse: Não cometerás adultério, também disse: Não matarás. Se tu pois não cometeres adultério, mas matares, estás feito transgressor da lei. 
12. Assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade. 
13. Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo.

10. Porque qualquer que guardar toda a lei.

Ele só quer dizer que Deus não será honrado com exceções, nem nos permitirá cortar da sua lei o que é menos agradável a nós. 

À primeira vista, esta sentença parece difícil para alguns – como se o apóstolo aprovasse o paradoxo dos estoicos, que torna todos os pecados iguais; e como se ele afirmasse que aquele que peca em uma só coisa devesse ser castigado igualmente com aquele cuja vida inteira foi pecaminosa e perversa. 

Mas é evidente, a partir do contexto, que nada disso se passava pela sua mente. 
Pois devemos sempre observar a razão pela qual alguma coisa é dita. 

Ele nega que o nosso próximo seja amado quando apenas alguns deles são, por ambição, escolhidos, e o restante negligenciado. 

Isto ele prova porque não é obediência a Deus, quando não é prestada uniformemente de acordo com o seu mandamento. 

Então, assim como a regra de Deus é clara e completa, ou perfeita, do mesmo modo devemos considerar a inteireza, a fim de que nenhum de nós separe presunçosamente o que ele uniu. 

Que haja, portanto, uma uniformidade, se desejamos obedecer corretamente a Deus. 

Assim como, por exemplo, se um juíz punisse dez roubos, mas deixasse um homem sem castigo, ele trairia a obliqüidade da sua mente, pois assim se mostraria mais indignado contra homens do que contra crimes – porque o que condena em um ele absolve em outro.

Então agora entendemos o propósito de Tiago – 

Se separamos da lei de Deus o que é menos agradável a nós, ainda que em outras partes sejamos obedientes, tornamo-nos culpados de tudo, porque em algo particular violamos toda a lei. E, embora ele acomode o que é dito ao tema em questão, isto é tomado a partir de um princípio geral – que Deus nos prescreveu uma regra de vida, a qual não nos é lícito mutilar.

Pois isto não é dito acerca de uma parte da lei: “Este é o caminho, andai por ele”; nem a lei promete uma recompensa, exceto à obediência total. 

Insensatos, então, são os escolásticos, que julgam que a justiça parcial, tal como a chamam, seja meritória; pois esta passagem, e muitas outras, claramente mostram que não existe justiça senão em uma obediência perfeita à lei.

11. Porque aquele que disse, ou que tem dito.

Esta é uma prova do verso anterior – porque o Legislador deve ser mais considerado do que cada preceito particular isoladamente. 
A justiça de Deus, como um corpo indivisível, está contida na lei. Então, todo aquele que transgride um só artigo da Lei destrói, até onde pode, a justiça de Deus. 
Além disso, assim como em uma parte, do mesmo modo em cada parte, a vontade de Deus é provar a nossa obediência. Por isso, um transgressor da lei é todo aquele que peca quanto a qualquer um dos seus mandamentos, segundo este dito: “Maldito aquele que não cumpre todas as coisas” (Dt 27:26). 

Vemos ainda que transgressor da lei, e culpado de todos, significam a mesma coisa, de acordo com Tiago. 

12. Assim falai.

Alguns dão esta explicação – de que, como se gabavam demasiadamente, eles são convocados ao justo tribunal; pois os homens se absolvem de acordo com os seus próprios conceitos porque se afastam do julgamento da lei divina. 

Então ele os lembra de que todos os feitos e obras ali serão levados em conta, porque Deus julgará o mundo de acordo com a sua lei. 

Como, porém, tal declaração poderia tê-los afetado de terror imoderado, para corrigir ou mitigar o que poderiam ter considerado severo, ele acrescenta: a lei da liberdade. 

Pois sabemos o que Paulo diz: “Todos aqueles que estão debaixo das obras da lei estão debaixo da maldição” (Gl 3:10). Por onde o julgamento da lei em si mesmo é condenação à morte eterna; mas ele quer dizer, através da palavra liberdade, que estamos livres do rigor da lei. 

Este sentido não é completamente inadequado, ainda que, se alguém examinar mais precisamente o que vem logo em seguida, verá que Tiago queria dizer outra coisa; o sentido é como se ele tivesse dito: “A não ser que desejais sofrer o rigor da lei, deveis ser menos rígidos para com o vosso próximo; pois a lei da liberdade é idêntica à misericórdia de Deus, que nos livra da maldição da lei”. 

E, assim, este verso deve ser lido com o que segue, onde ele fala do dever de suportar as fraquezas. 

E, sem dúvida, toda a passagem soa melhor assim: “Como nenhum de nós pode permanecer de pé diante de Deus, a não ser que sejamos salvos e livres do rigor estrito da lei, assim devemos agir, para que, por demasiada severidade, não excluamos a indulgência ou misericórdia de Deus, da qual todos nós precisamos até o fim”. 

13. Porque o juízo será.

Esta é uma aplicação do último verso ao tema em questão, que confirma totalmente a segunda explicação que citei; pois ele mostra que, como permanecemos de pé somente pela misericórdia de Deus, devemos demonstrar isto àqueles que o próprio Senhor nos recomenda. 

De fato, é uma recomendação singular de bondade e benevolência, que Deus prometa ser misericordioso para conosco, se assim formos para com nossos irmãos; não que nossa misericórdia, por maior que possa ser, demonstrada aos homens, mereça a misericórdia de Deus; e sim que Deus deseja que aqueles que ele adotou, assim como ele é para com eles um Pai bondoso e indulgente, tragam e demonstrem a sua imagem na terra, de acordo com as palavras de Cristo: “Sede vós misericordiosos, assim como vosso Pai que está nos céus é misericordioso” (Mt 5:7).

Por outro lado, devemos notar que ele não poderia denunciar nada mais severo ou mais terrível sobre eles do que o juízo de Deus. Por onde segue-se que são todos miseráveis e perdidos aqueles que não fogem para o asilo do perdão.

E a misericórdia triunfa.

Como se tivesse dito: “Somente a misericórdia de Deus é o que nos livra do terror e tremor do juízo”, ele toma regozijar-se ou gloriar-se no sentido de ser vitorioso ou triunfante – pois o juízo de condenação está suspenso sobre todo o mundo, e nada além da misericórdia pode trazer alívio. 

Dura e forçada é a explicação daqueles que consideram a misericórdia expressa aqui no sentido da pessoa, pois não se pode dizer propriamente que os homens se regozijam ou se gloriam contra o juízo de Deus; mas a própria misericórdia de certo modo triunfa, e reina sozinha, quando a severidade do juízo diminui; ainda que eu não negue que por esta causa surja a confiança em regozijar-se – ou seja, quando os fiéis sabem que a ira de Deus de certo modo se sujeita à misericórdia, de modo que, sendo livrados pela última, não são sobrepujados pela primeira.

14. Meus irmãos, que aproveita se alguém disser que tem fé, e não tiver as obras? Porventura a fé pode salvá-lo?  
15. E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento quotidiano, 
16. E algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí? 
17. Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma.
18. Mas dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. 
19. Tu crês que há um só Deus; fazes bem. Também os demônios o crêem, e estremecem

14. Que aproveita.

Ele passa a recomendar a misericórdia. E, como havia ameaçado que Deus seria um Juíz severo para conosco, e ao mesmo tempo mui terrível, a não ser que sejamos benignos e misericordiosos para com o nosso próximo; e como, por outro lado, os hipócritas objetavam e diziam que a fé, na qual consiste a salvação dos homens, é suficiente para nós; ele condena agora esta vã jactância. 

A suma, então, do que se diz, é que a fé sem o amor de nada aproveita, e que, por isso, está completamente morta.

Mas aqui surge uma questão: Pode a fé ser separada do amor? 

De fato, é verdade que a exposição desta passagem tem produzido aquela distinção comum dos sofistas, entre a fé informe e fé formada; mas Tiago não sabia nada a respeito de tal coisa, pois está claro, a partir das primeiras palavras, que ele fala da falsa confissão de fé; pois ele não começa assim: “Se alguém tem fé”, e sim: “Se alguém diz que tem fé” – por meio de que certamente sugere que os hipócritas se vangloriam do nome oco da fé, a qual na verdade não lhes pertence.

O que ele chama então de fé é uma concessão, como dizem os retóricos; pois, quando discutimos um ponto, não faz mal – mais ainda, às vezes é aconselhável – conceder a um adversário o que ele pede, pois, tão logo a coisa em si seja conhecida, o que é concedido pode ser facilmente retirado dele. 

Tiago, então, como estava satisfeito com que este fosse um falso pretexto com o qual os hipócritas se encobriam, não estava disposto a levantar disputa sobre uma palavra ou expressão. 
Contudo, lembremo-nos de que ele não fala segundo a impressão da sua mente quando faz menção à fé, mas que, pelo contrário, disputa contra aqueles que faziam uma falsa pretensão quanto à fé, da qual estavam totalmente destituídos. 

Porventura a fé pode salvá-lo?

Isto é o mesmo que se ele tivesse dito que não alcançamos a salvação por um mero e frígido conhecimento de Deus, o qual todos confessam ser mui verdadeiro; pois a salvação vem a nós através da fé por esta razão – porque ela nos une a Deus. E isto não ocorre de nenhum outro modo senão por estarmos unidos ao corpo de Cristo, de modo que, vivendo pelo seu Espírito, também somos governados por ele. 
Não existe nada disto na imagem morta da fé. Então, não é de se surpreender que Tiago negue que a salvação esteja unida a ela.

15. Se o irmão, ou, pois, se o irmão.

Ele toma um exemplo a partir do que está relacionado com o seu assunto; pois vinha exortando-os ao exercício dos deveres do amor. 

Se alguém, pelo contrário, se jactasse de que estava satisfeito com a fé sem as obras, ele compara esta fé obscura com as palavras de alguém que manda um homem faminto saciar-se sem lhe fornecer o alimento de que este está destituído. 

Então, assim como aquele que despede um homem pobre com palavras, e não lhe oferece ajuda, trata-o com escárnio, do mesmo modo aqueles que inventam para si uma fé sem obras, e sem nenhum dos deveres da religião, brinca com Deus.

Quando ele diz: “Porventura a fé pode salvá-lo?”, seu sentido é: “Porventura a fé que ele diz ter pode salvá-lo?” – a fé que está morta e não produz obras; pois essa é claramente a fé pretendida aqui, tal como se mostra pelo que se segue. Para tornar o sentido mais evidente, pode se traduzir a sentença assim: “Porventura esta fé pode salvá-lo?” – ou seja, a fé que não tem obras. 

17. É morta em si mesma.

Ele afirma que a fé é morta em si mesma, ou seja, quando destituída de boas obras. 
Por onde concluímos que, na verdade, isto não é fé, pois, quando morta, não retém devidamente o nome. 
Os sofistas apelam para esta expressão e dizem que algum tipo de fé existe em si mesma; mas esta objeção frívola e capciosa é facilmente refutada; pois é suficientemente evidente que o Apóstolo raciocina a partir do que é impossível – assim como Paulo chama um anjo de anátema, se tentasse subverter o evangelho (Gl 1:8). 

18. Mas dirá alguém.

Erasmo introduz aqui duas pessoas como interlocutores, das quais uma se gloria da fé sem as obras, e a outra das obras sem a fé; e ele acredita que ambas finalmente são refutadas pelo Apóstolo. 

Mas esta visão parece-me forçada demais. 
Ele acha estranho que isto devesse ser dito por Tiago: Tu tens a fé – o qual não admite nenhuma fé sem obras. Mas nisto ele está muito enganado, porque não percebe uma ironia nestas palavras. 
Então, ἀλλὰ entendo no sentido de “não, mas antes”; e τὶς no sentido de “alguém” – pois o propósito de Tiago era expor o orgulho insensato daqueles que imaginavam que tinham fé, quando, pela sua vida, mostravam que eram incrédulos; pois ele sugere que seria fácil para todos os fiéis que levavam uma vida santa despojar os hipócritas dessa jactância com que estavam inchados

Mostra-me. 

Embora a leitura mais aceita seja: “pelas obras”, a Antiga Latina é mais apropriada, e a leitura também se encontra em algumas cópias gregas. 
Portanto, não hesitei em adotá-la. Então, ele manda mostrar a fé sem as obras, e assim raciocina a partir do que é impossível, para provar o que não existe. 

Portanto, ele fala ironicamente. Mas, se alguém prefere a outra leitura, ela redunda na mesma coisa: “Mostra-me pelas obras a tua fé” – pois, como ela não é algo inativo, necessariamente deverá ser provada por meio das obras. 
O sentido então é: “A menos que a tua fé produza frutos, eu nego que tenhas qualquer fé

Mas, pode-se questionar se a justiça de vida exterior é uma evidência segura da fé. Pois Tiago diz: “Eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”. 
A isto eu respondo que os incrédulos às vezes se sobressaem em virtudes especiosas, e levam uma vida honrosa, livre de todo o crime; e, por isso, obras aparentemente excelentes podem existir à parte da fé. 
E, na verdade, Tiago também não defende que todo aquele que parece bom possua fé. 
Ele quer dizer apenas isto – que a fé, sem a evidência das boas obras, é pretendida em vão, porque sempre nasce fruto da raiz viva de uma boa árvore. 

9. Tu crês que há um só Deus.

A partir desta única sentença, torna-se evidente que toda a disputa não é sobre fé, e sim sobre o conhecimento comum de Deus – que não pode conectar os homens a Deus mais do que a vista do sol pode levá-los ao céu; mas é certo que, pela fé, chegamos perto de Deus. 

Além disso, seria ridículo se alguém dissesse que os demônios têm fé; e Tiago prefere-os a eles do que aos hipócritas, neste aspecto. 
O diabo estremece, diz ele, à menção do nome de Deus, porque, quando reconhece o seu próprio juíz, enche-se de temor dele. Então, aquele que despreza um Deus reconhecido é muito pior. 

Fazes bem é dito com o fim de extenuar – como se ele tivesse dito: “É, certamente, algo magnífico ficar abaixo dos demônios!”

20. Mas, ó homem vão, queres tu saber que a fé sem as obras é morta? 
21. Porventura o nosso pai Abraão não foi justificado pelas obras, quando ofereceu sobre o altar o seu filho Isaque?
22. Bem vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi aperfeiçoada. 
23. E cumpriu-se a Escritura, que diz: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe isso imputado como justiça, e foi chamado o amigo de Deus.  
24. Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé.  
25. E de igual modo Raabe, a meretriz, não foi também justificada pelas obras, quando recolheu os emissários, e os despediu por outro caminho?  
26. Porque, assim como o corpo sem o espírito está morto, assim também a fé sem obras é morta 

20. Mas, queres tu saber.

Devemos entender o estado da questão, pois a disputa aqui não é a respeito da causa da justificação, mas apenas de que aproveita uma confissão de fé sem as obras, e que opinião devemos formar acerca disto. 

Absurdamente, então, agem aqueles que se esforçam por provar, através desta passagem, que o homem é justificado pelas obras; porque Tiago não queria dizer nada disso, pois as provas que ele acrescenta se referem a esta declaração – de que não existe fé, ou apenas uma fé morta, sem as obras. 
Ninguém jamais entenderá o que é dito, nem avaliará sabiamente as palavras, exceto aquele que mantiver em vista o propósito do escritor. 

21. Não foi Abraão.

Os sofistas se apegam à palavra justificado, e então bradam, como se fossem vitoriosos, que a justificação é parcialmente através das obras. 
Mas devemos procurar uma interpretação correta, de acordo com a intenção geral de toda a passagem. 
Já temos dito que Tiago não fala aqui da causa da justificação, ou da maneira como os homens alcançam a justiça – e isto está claro a todos; mas que o seu objetivo era apenas mostrar que as boas obras sempre estão conectadas à fé; e, portanto, como declara que Abraão fora justificado pelas obras, ele está falando a respeito da prova que ele dera da sua justificação.

Quando, portanto, os sofistas colocam Tiago contra Paulo, eles se perdem pelo sentido ambíguo de um termo. 

Quando Paulo diz que somos justificados pela fé, ele não significa outra coisa senão que, pela fé, somos reputados por justos diante de Deus.

Tiago tem em vista algo completamente diferente – a saber, mostrar que aquele que confessa ter fé deve provar a realidade da sua fé por meio das suas obras. Sem dúvida, Tiago não pretendia nos ensinar aqui o fundamento sobre o qual a nossa esperança de salvação deve se apoiar; e é nisto somente que Paulo se detém 

Então, para que não caiamos nesse falso raciocínio que tem enganado os sofistas, devemos notar o duplo sentido da palavra justificado

Paulo se refere, por meio dela, à imputação gratuita da justiça diante do tribunal de Deus;  

Tiago, à manifestação da justiça através da conduta – e isso diante dos homens, conforme podemos deduzir a partir das palavras precedentes: “Mostra-me a tua fé etc.”. 

Neste verso, admitimos plenamente que o homem é justificado pelas obras – como quando alguém diz que o homem é enriquecido pela compra de um grande e valioso baú, porque suas riquezas, anteriormente ocultas, encerradas no baú, foram deste modo reveladas.

22. Pelas obras a fé foi aperfeiçoada.

Através disto ele mostra novamente que a questão aqui não é a respeito da causa da nossa salvação, mas se as obras acompanham necessariamente a fé; pois, neste sentido, é dito que ela foi aperfeiçoada pelas obras, porque não foi inativa. 

Diz-se que ela foi aperfeiçoada pelas obras, não porque recebesse delas a sua própria perfeição, e sim porque deste modo provou ser verdadeira. 
Pois a distinção fútil que os sofistas fazem a partir destas palavras, entre fé informe e formada, não precisa de uma refutação elaborada; pois a fé de Abrão foi formada e, portanto, aperfeiçoada antes de sacrificar seu filho. 

E esta obra não foi como que a obra final, ou conclusiva. Depois seguiram-se coisas pelas quais Abraão provou o incremento da sua fé. 

Por isso, isto não foi o aperfeiçoamento da sua fé, e ela também não obteve a sua forma pela primeira vez nessa ocasião. Tiago então não entendia outra coisa, senão que a integridade da sua fé se revelou nessa ocasião porque produziu aquele fruto notável de obediência. 

23. E cumpriu-se a Escritura.

Aqueles que procuram provar, a partir desta passagem de Tiago, que as obras de Abraão foram imputadas para justiça, necessariamente confessarão que a Escritura é pervertida por ele; porque, por mais que se retorçam de todos os lados, nunca poderão tornar o efeito em sua própria causa. 

A passagem é citada de Moisés (Gn 15:6). A imputação da justiça que Moisés menciona precedeu mais de trinta anos à obra pela qual eles querem que Abraão tenha sido justificado.

Como a fé fora imputada a Abraão quinze anos antes do nascimento de Isaque, certamente isto não poderia ter sido realizado através do ato de sacrificá-lo. 
Considero que estão fortemente atados  por um nó indissolúvel aqueles que imaginam que a justiça fora imputada a Abraão diante de Deus porque ele sacrificou seu filho Isaque, o qual ainda não era nascido quando o Espírito Santo declarou que Abraão fora justificado. 
Por onde necessariamente segue-se que algo posterior é indicado aqui.

25. E de igual modo Raabe, não foi também.

Parece estranho que ele relacionasse aqueles que eram tão diferentes. Por que não escolheu antes alguém dentre um número tão grande de ilustres patriarcas, e o uniu a Abraão? 
Por que preferiu uma meretriz a todos os demais? 
Ele propositalmente uniu duas pessoas tão diferentes no seu caráter, a fim de mostrar mais claramente que ninguém, seja qual for a sua condição, nação ou classe social, jamais foi reputado por justo sem as boas obras. 
Ele havia citado o patriarca, de longe o mais eminente de todos; agora inclui, sob a pessoa de uma meretriz, todos aqueles que, sendo estrangeiros, foram unidos à Igreja. 

Então, todo aquele que procura ser reputado por justo, ainda que possa estar até entre os mais inferiores, deve mostrar que é tal por meio de boas obras. 

Tiago, segundo a sua maneira de falar, declara que Raabe foi justificada pelas obras; e os sofistas concluem, por causa disto, que alcançamos a justiça pelos méritos das obras. 

Mas negamos que a disputa aqui seja concernente ao modo de alcançar a justiça. 
De fato, admitimos que as boas obras são necessárias para a justiça – apenas removemos delas o poder de conferir a justiça, porque elas não podem permanecer diante do tribunal de Deus.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Capítulo 1

Capítulo 5

Introdução